a Brigada Móvel de plantio da vinha americana - II
N.
145 - PARTE 2
(continuado)
Foi em 21
de maio de 1945 nas Gândaras
O
CORTE DAS VIDEIRAS AMERICANAS QUE ORIGINOU TRÊS MORTOS
(Textos
publicados no Grupo Facebook, 'História, Cultura e Estórias' de 28 de novembro
a 4 de dezembro de 2023)
OFÍCIO DA
CÂMARA MUNICIPAL DA LOUSÃ, REF.ª 696 DE
25 DE MAIO DE 1945 PARA GOVERNO CIVIL DE COIMBRA
Conforme
conversa telefónica que há dias tive com V. Exa. e depois de ter ouvido o Sr.
Professor das Fontaínhas sobre os desacatos que há dias se desenrolaram naquele
lugar, o mesmo senhor me informou do seguinte.
Que
estando na sua escola ouviu alguns tiros e chegando à porta viu que os soldados
da Guarda Republicana faziam frente ao Povo que pretendia tocar o sino da
Capela, verificando que um dos guardas se encontrava já ferido e desarmado, o
qual recolheu por algum tempo no seu gabinete da Escola.
Os dois
guardas restantes iam retirando, avisando sempre o povo para não se aproximar,
até que conseguiram deixar o local, evitando, com a sua prudência, um maior
número de vítimas.
Depois
disso foi em socorro dos feridos, sendo nessa altura agredido no nariz com
pontapés.
Não pode
dizer da parte de quem partiu o ataque, pois foi depois tiros que constatou o
conflito no seu auge.
Este
depoimento é, como V. Exa. pode calcular, feito por uma pessoa que reputo da
maior confiança e que assim merece absoluto crédito.
O
Presidente da Câmara da Lousâ
Dr. Pedro
de Lemos
OFÍCIO DA
CÂMARA MUNICIPAL DA LOUSÃ, REF.ª 785 DE 14 DE JUNHO DE 1945 PARA O GOVERNADOR
CIVIL DE COIMBRA
Junto
tenho a ordem de remeter a V. Exa. um exemplar do manifesto dirigido aos
camponeses do distrito de Coimbra, ultimamente e largamente distribuído,
principalmente às margens dos lugares que circundam a Estrada da Beira.
Pelo seu
conteúdo, pela insuficiência dos dados precisos e até por troca de nomes ou insuficiência
destes, tudo me leva a crer não ser do concelho da Lousã, ou mesmo daqui
próximo, o seu autor. Não quero, porém, deixar de enviar a V. Exa., para amanhã
se proceder se possível fôr contra aqueles elementos perturbadores da ordem que
podem chegar ao nosso concelho.
"CAMPONESES
DO DISTRITO DE COIMBRA!
HOMENS E
MULHERES
Por não
consentirem que fossem arrancadas as videiras americanas, os camponeses de
Santa Luzia, concelho da Lousã, foram alvejados a tiro pela Guarda Republicana
que acompanhava a Brigada da Junta Nacional de Vinhos.
Um
camponês foi assassinado, dois ficaram em perigo de vida e vários outros homens
e mulheres foram feridos. Os componentes de Santa Luzia pagaram com o seu
sangue, a coragem com que resistiram ao roubo das videiras que produzem o vinho
americano - o vinho dos pobres. Foi por lutarem pelo seu vinho, que tanto suor
lhes arranca do corpo, que os camponeses de Santa Luzia foram assassinados,
espancados. É esta a utilidade da Junta Nacional de Vinhos, o organismo corporativo
que a quadrilha exploradora de Salazar criou; são estes os benefícios dos
organismos salazaristas; apenas servem para roubar o povo e mandá-lo assassinar
quando ele não está disposto a que lhe tirem o pão.
Camponeses!
Vós não consentireis que sejam arrancadas as videiras americanas! Vós não
consentireis que vos roubem o vinho dos pobres, o vosso vinho. - Unidos
podereis vencer.
Todos
devem ir até junto do Presidente da Câmara, do Presidente do Grémio da Lavoura,
do pároco da freguesia, protestar contra o arranque das vinhas americanas.
Soldados
da Guarda Nacional Republicana fazei causa comum com o povo de que fazem parte.
Vós sois também homens do povo com uma farda vestida.
Camponeses,
homens e mulheres, tocai o sino a rebate como fez o heróico trabalhador Manuel
Rodrigues, em Santa Luzia, para juntar todos os habitantes da vossa terra e
impedir que as vossas videiras sejam arrancadas
Camponeses,
os vossos irmãos de Santa Luzia abriram o caminho da luta, são 'heróis' do povo
que por ele se sacrificaram.
Exigi que
imediatamente sejam soltos os que se encontram presos.
Exigi que
os soldados agressores e assassinos sejam castigados pelos seus crimes
O COMITÉ
REGIONAL DO CENTRO DO CONSELHO NACIONAL DE UNIDADE ANTI-FASCISTA"*
O
Presidente da Câmara da Lousã
Dr. Pedro
de Lemos
* - O
Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista, MUNAF, foi criado em 1943, estando
nele representados, entre outros, o Partido Republicano Português, a União
Socialista, o Partido Comunista Português, a Maçonaria, o Grupo da Seara Nova,
católicos, monárquicos e anarquistas. O seu Conselho Nacional era presidido
pelo General Norton de Matos.
Na região
de Coimbra, um dos seus principais responsáveis era o poeta e professor
universitário Joaquim Namorado.
CONSIDERAÇÕES
GERAIS
1
- O VINHO AMERICANO
Por volta
de 1870 chegou a Portugal a filoxera, um pequeno ácaro amarelo que tinha
surgido na América do Norte em 1853, o qual se declarou uma praga terrível,
dado que sugava as raízes das videiras destruindo-as completamente.
Para
recuperar as videiras nacionais recorreu-se a porta enxertos de videiras
americanas, as quais tinham encontrado maneira de resistir áquele piolho.
Ora a
fermentação do híbrido da vinha americana com a vinha europeia deu origem ao
vinho americano ou morangueiro, como é designado no Continente, ou vinho de
cheiro como lhe chamam nos Açores.
É um vinho
de fraca graduação alcoólica que vai dos 7 aos 10 graus, de côr violácea a
rosada, com intenso aroma furtado que lembra o morango.
2
- SALAZAR ATACA O MORANGUEIRO
Rapidamente
as videiras americanas, que inicialmente tinham sido utilizadas na
reconstituição do vinhedo do Douro, foram-se espalhando sobretudo pelas zonas
norte e centro, servindo especialmente as populações mais desfavorecidas e
instalando-se em locais menos apropriados para as vinhas convencionais.
Acontece
então que o Governo, segundo uns com o objetivo de proteger os interesses dos
grandes viticultores nacionais, proíbe em 23 de março de 1935 (Lei 1891) a
plantação de videiras em todo o continente, até ao condicionamento legal da sua
cultura nas diversas regiões agrícolas. E logo a seguir, em 18 de abril do
mesmo ano de 1935 (Lei 25.270), impõe a destruição dos produtores diretos
americanos.
A
propósito desta legislação, o nosso conterrâneo João Bernardo Lopes, Chefe de
Finanças reformado e também filho de agricultores das Gândaras que sentiram a
tragédia do corte das videiras americanas, escreveu um artigo publicado em 28
de junho de 1994 no jornal "Trevim”, intitulado “Corte de Videiras nas
Gândaras - Uma provocação aos agricultores“, referindo-se áqueles documentos
como "Leis Secas", por serem destituídas de preâmbulos que
permitissem fazer uma interpretação mais aprofundada e correta de aquilo a que
se propunham.
Posteriormente
o Governo foi alegando que tais medidas visavam impedir a falsificação dos
vinhos portugueses através da mistura de qualidades inferiores que o
desacreditaram nos mercados estrangeiros.
Está-se
mesmo a ver que morangueiro das Gândaras, que não chegava ao verão nas adegas
dos seus honrados proprietários, ia poder estragar o vinho que se exportava
para as Américas, os Brasis e sei eu lá mais para onde.
3
- ANTECEDENTES TRÁGICOS
Foi na
segunda-feira de 6 de dezembro de 1937 que uma Brigada de Comissão de
Viticultura da Região de Vinhos Verdes, apoiada por uma Força da GNR, entrou no
concelho de Arouca à procura de videiras americanas para as derrotar. As
disputas com os revoltados lavradores foram inevitáveis, começando as desordens
o lugar de Malhadouro, concelho de Santa Eulália, dirigindo-se depois a
população para a vila, engrossada pelos moradores de Moldes. Ali o confronto
foi violento, tendo como resultado diversos feridos entre militares e civis,
tendo um destes acabado por morrer na Casa de Saúde de Santa Catarina, no
Porto.
Mais para
baixo, em Válega, Ovar, dois lavradores foram mortos, em 15 de maio de 1939,
por uma força militar que rompeu contra a população que se opunha ao corte das
videiras americanas.
Mais
reencontros se terão dado, por este motivo, em outras regiões do País, mas a
Censura, repressiva e implacável, terá mantido no desconhecimento essas
situações.
4
- REPRESSÃO CHEGA À LOUSÃ
Apesar dos
receios e dúvidas manifestados pelo presidente da Câmara, Dr. Pedro de Lemos, a
Brigada do Corte de Videiras, com a sua intervenção sustentada por um Sargento
da GNR e 8 praças, dirigiu-se às Gândaras na manhã do dia 21 de maio de 1945,
com a intenção de obrigar os lavradores a indicarem o lugar das suas videiras
de vinho morangueiro, para as mesmas serem cortadas.
Esta
desgraça, durante a qual perderam a vida três pessoas (dois civis e um
militar), foi devidamente contada por um jornalista da Lusa, o lousanense
Casimiro Simões, na edição de 18 de maio de 1995 do jornal "Trevim".
Ali se dá conta da firme revolta da população, perante a intenção de lhe
cortarem as vides que já tinham bem desenvolvidos os cachos que iriam permitir fabricar
o vinho para seu consumo, sem uma razão plausível para eles. Apenas por força
de um chavão, -"devido ao superior interesse da nação"-, que nada
lhes dizia.
5
- AFINAL O MORANGUEIRO FAZ ASSIM TANTO MAL?
É comum
ouvir dizer e ler-se que o vinho morangueiro é perigoso para quem o consome.
É curioso
que nem a legislação que obrigou ao corte das videiras americanas, nem na
imprensa da altura, nem na correspondência oficial que já mostrámos, se alerta
para os perigos que a ingestão daquele líquido poderia causar.
Daquilo
que eu li, apenas o político e advogado lousanense Dr. Carlos Sacadura, num
artigo intitulado "Vides Americanas" no qual apoia o corte
daquelas videiras,
publicado
com o pseudónimo de DET em 15 de maio de 1937 em "O Povo da Lousã",
muito timidamente refere que o vinho morangueiro " é um produto inferior e
para muitos nocivos à saúde".
Também
achei estranho, que se o Governo entendesse que havia tal perigosidade, se
limitasse a proibir tal vinho no continente, não o fazendo nos Açores.
Poderia
também pensar-se que está ideia posta a correr com o fundamento de que o
morangueiro faz mal, sem grandes explicações, podia ter resultado de uma
tentativa de branqueamento dos maus resultados da aplicação de medidas
impopulares.
À falta de
outra possibilidade, e até porque acredito que o que mata não é o veneno, mas
sim a dose, entretive-me a consultar o Google, que por vezes não é a fonte mais
credível e segura, mas que serve para se ficar com algumas ideias sobre o
assunto.
Dos sites
que visitei, um dos que me pareceu mais interessante e aparentemente fiável,
foi o com o título “Diário de um Enófilo - Vinho e Metanol", inserido em 2
de setembro de 2016 por um cidadão brasileiro.
Escreve
ele que na generalidade todos os vinhos têm metanol (álcool metílico), em
proporções médias que variam de 50 a 300 mg/l, sendo que a Vitis Labrusca
(casta americana) possui mais metanol que a Vitis Vinífera (casta europeia).
Mas mesmo
assim, o autor do texto recorre a uma série de contas e fórmulas técnicas que o
levam a chegar à conclusão de que segundo os critérios da União Europeia é
absolutamente seguro beber 5,2 garrafas de 0,75l morangueiro (proeza que eu nem
nos meus melhores tempos me atrevi a sequer tentar), e que para se chegar a uma
intoxicação grave é preciso ingerir 26,1 garrafas. Credo.
6
- HOUVE LOUSANENSES IMPLICADOS NA DISTRIBUIÇÃO DO MANIFESTO?
Apesar da
força da Censura, que amordaçava a Imprensa, e de a Lousã ser uma vila à data
extremamente isolada, o certo é que a triste notícia dos confrontos nas
Gândaras transitou até Coimbra. Mesmo que tenha levado muito tempo a fazer o
percurso de trinta quilómetros até áquela cidade, dado que a revolta dos
populares gandarenses foi em 21 de maio e o manifesto do Conselho Nacional da
Unidade Anti Fascista foi denunciado pelo Presidente da Câmara ao Governo Civil,
apenas em 14 de junho.
É possível
que o eco daquele acontecimento tenha chegado aos homens da MUNAF por mero
acaso.
Mas também
pode ser que a informação tenha partido aqui da Lousã. Por exemplo, através do
comerciante da Travessa, Armando Batista, (que dois ou três meses depois iria
integrar a primeira célula do Partido Comunista Português nesta localidade,
conjuntamente com Jorge Babo e Fernando Neto), que bem poderia ter avisado o
seu parente, Baeta de Campos, proprietário do Colégio Portugal, situado na
cidade dos estudantes, e que tinha boa ligação com os comunistas.
7
- DA AMEAÇA FÍSICA À AMEAÇA ECONÓMICA
Falhadas,
apesar da violência utilizada, as iniciativas para cortar, contra a vontade dos
agricultores, as videiras americanas, o Governo mudou de tática optando por
fazer pressão na já débil economia dos pequenos proprietários rurais.
Assim fez
publicar, em 23 de novembro de 1951 o Decreto 38.525, que obrigava os agricultores
que possuíam produtores diretos (vides americanas), a pagar uma taxa anual de 2.50 escudos por cada pé,
acrescida anualmente de mais 2.50 escudos até perfazer a quantia de 10.00
escudos.
Por essa
altura, o Grémio da Lavoura da Lousã fez publicar uma circular na qual aconselhava
os seus associados a enxertar ou a cortarem as suas videiras do morangueiro,
para se poderem libertar de um "tão pesado imposto”.
8
- "O POVO DA LOUSÔ DEFENDE SOLUÇÕES PARA O AMERICANO
O Diretor
do semanário "O Povo da Lousã" e à data destes acontecimentos
Governador Civil de Santarém, Dr. Eugénio de Lemos, não deve ter ficado muito satisfeito,
aliás como já se depreendeu ter acontecido com o seu irmão Dr. Pedro de Lemos,
com o comportamento das Brigadas destinadas a cortar as vinhas morangueiras.
Aliás, o
lousanense João Pedro Mascarenhas de Lemos, filho do primeiro daqueles
senhores, e sobrinho do segundo, num artigo publicado em 2 de junho de 1994
dava conta de que aqueles seus dois familiares ajudaram os agricultores
envolvidos nos processos judiciais.
Pois o Dr.
Eugénio de Lemos, publicou em "O Povo da Lousã" de 30 de março de
1957 (o artigo não está assinado, mas não podia ser de outra pessoa), no qual
argumentava que "a existência de videiras americanas em limites de
pequenas propriedades ou em latadas junto de casas, não criam ao vinho nacional
problema algum de concorrência" até porque "o vinho produzido em
escala minúscula por aqueles lavradores só se destina ao uso exclusivo da
casa".
Considerava,
pois, que o Governo deveria permitir a existência das videiras americanas a
delimitar as propriedades, ou com o máximo de 80 pés a cada indivíduo.
9
- FALTA UMA MEMÓRIA
Depois de
recordar todo este processo, confesso que sinto um certo embaraço por a Lousã
ainda não ter feito uma homenagem, por mais modesta que fosse, em memória dos
corajosos camponeses que recusaram a imposição de uma lei injusta. Dois pagaram
com a vida a sua nobre atitude, outros ficaram estropiados, outros sofreram
perseguições e prisão, mas com isso conseguiram que a dignidade do Povo das
Gândaras se mantivesse impoluta.
Fontes/Links:
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